terça-feira, 5 de setembro de 2017

Mastite Bovina

INTRODUÇÃO

A palavra mastite, derivada do grego mastos, ou mamite, do latim mammae, designa uma doença de grande importância clínica e econômica para a produção leiteira de todo o mundo, sendo caracterizada como um processo inflamatório da glândula mamária e, etiologicamente, trata-se de uma doença complexa e de caráter multifatorial, envolvendo diversos patógenos, o ambiente e fatores inerentes ao animal.
A prevalência da mastite está relacionada, principalmente, ao manejo antes, durante e após a ordenha. Isso explica a importância da conscientização do ordenhador, dos procedimentos adequados de ordenha, incluindo as formas corretas de higienização e desinfecção do ambiente, do animal, do profissional e de todos os utensílios utilizados na ordenha.
A mastite pode ser causada por injúria química, mecânica e principalmente por infecção microbiana. As consequências desta patologia são alterações nas propriedades físico-químicas do leite e no parênquima glandular, podendo afetar qualquer glândula mamária  funcional do animal. Existem duas formas principais de apresentação da mastite: A clínica (quando as alterações são visíveis macroscopicamente) e a subclínica (quando as alterações não são perceptíveis a olho nu).
A mastite clínica caracteriza-se pelo aparecimento de edemas, aumento de temperatura, endurecimento e dor na glândula mamária ou aparecimento de grumos, pus ou quaisquer alterações das características do leite, causando grandes perdas por descarte do leite, gastos com medicamentos, perda funcional da glândula mamária e até morte do animal. O diagnóstico da mastite clínica é possível pela avaliação do aspecto do leite, à existência de grumos e às alterações do parênquima glandular, como o aumento da temperatura, vermelhidão local e consistência enrijecida da glândula.
A mastite subclínica, por não apresentar sinais visíveis e passar despercebida pelos proprietários e pelos empregados, esta apresentação da patologia pode se alastrar no rebanho, infectando outras vacas. Além disso, pode ocorrer destruição da capacidade funcional da glândula mamária, causando diminuição da produção leiteira e prejuízos à saúde do animal. Em relação ao diagnóstico, esse tipo de mastite, não existem sinais evidentes da doença, não sendo possível diagnosticá-la sem a utilização de testes adicionais. 
Os principais microrganismos causadores de mastite são agrupados em dois grandes grupos: Ambientais e contagiosos. Os principais microrganismos relacionados à mastite contagiosa são: Streptococcus agalactiae, Staphylococcus aureus e Corynebacterium bovis. Em relação a mastite ambiental destacam-se: Escherichia coli, Klebsiella pneumoniae, Enterobacter spp (todos pertencentes à família Enterobacteriaceae) e os Streptococcus spp. não agalactiae (Streptococcus uberis, Streptococcus dysgalactiae).
Diante da importância do tema, será relatado a seguir  um caso de mastite bovina contagiosa, onde serão descritos a patogênese da infecção, os fatores de virulência do microrganismo e a resistência do mesmo aos antimicrobianos.

RELATO DE CASO

J.P.M., Médico Veterinário de uma propriedade rural localizada no município de Santana do Paraíso-MG, realizou a inspeção de rotina de todo o rebanho leiteiro da propriedade e percebeu que uma vaca apresentava-se com uma das glândulas mamárias vermelhas e inchadas. Ao realizar a ordenha deste animal, o profissional notou que o leite apresentava grumos e tinha um aspecto diferente (a cor estava amarelada). Diante desta situação, J.P.M. realizou do teste CMT (California Mastitis Test) que é utilizado para pesquisa de presença de células somáticas (leucócitos) no leite e  apresentou o seguinte resultado: Presença de intensa geleificação do teste (indicando a presença de numerosos leucócitos na amostra de leite analisada).  Abaixo é demonstrada uma ilustração do teste CMT para melhor compreensão do leitor:
Imagem 1: Teste CMT. Nos campos da direita, foram
inoculadas duas amostras de leite para visualização
do aspecto do mesmo. Nos campos da esquerda foram
inoculadas as mesmas amostras de leite acrescidas
do reagente CMT. Note no campo inferior esquerdo
a formação de grumos e depósito no fundo da raquete.
Este resultado indica um teste positivo. Já o campo
superior esquerdo ficou homogêneo e sem a
formação de grumos, indicando um teste
negativo.
Fonte: Acervo do pesquisador. 























Diante deste resultado e dos sintomas clínicos apresentados pelo animal, o Médico Veterinário concluiu o diagnóstico de mastite bovina. Para o correto tratamento e manejo do rebanho, o profissional solicitou a assistência do Microbiologista para a coleta e análise do material, pois somente assim o profissional poderia diferenciar a mastite entre contagiosa ou ambiental.
Ao chegar na propriedade o Microbiologista observa a vaca que está isolada do restante do rebanho e nota que glândula mamária do animal apresenta-se vermelha e inchada. A imagem da glândula mamária afetada do animal é demonstrado abaixo:
Imagem 2: Coleta do leite para análise microbiológica.
Note que a glândula mamária do animal apresenta-se vermelha e 
inchada. Observe o aspecto viscoso que o leite apresenta ao
ser coletado da glândula mamária.
Fonte: Acervo do pesquisador.





















A coleta do material é realizada após desinfecção da glândula do animal com álcool a 70%. Foram descartados os três primeiros jatos do leite, como forma de limpar o ducto mamário do animal. O material foi coletado em frasco estéril e encaminhado imediatamente para o laboratório de microbiologia.
O material recebido no laboratório de microbiologia apresentava-se com aspecto purulento, sendo possível observar grumos no mesmo. Parte do material foi transferida para um tubo estéril para a realização das análises microbiológicas. Abaixo é demonstrado para fins didáticos a imagem do leite no tubo estéril para demonstração do aspecto purulento do mesmo:
Imagem 3: Leite coletado na propriedade rural em Santana
do Paraíso. Note o aspecto amarelado e purulento do
material.
Fonte: Acervo do pesquisador.



















O material acondicionado no tubo estéril foi centrifugado a 3.000 rpm por 6 minutos e o sobrenadante e a parte gordurosa do material foram descartadas e o com o sedimento foram realizadas a coloração de Gram e a semeadura nos meios de cultura apropriados. A coloração de Gram revelou a presença de numerosos leucócitos polimorfonucleares e a presença de numerosos cocos Gram-positivos isolados, aos pares e em cadeias com morfologia compatível com Streptococcus spp. A imagem da coloração de Gram é demonstrada abaixo para melhor compreensão e ilustração do caso clínico.
Imagem 4: Coloração de Gram do sedimento
do leite. Note a presença de numerosos
leucócitos e a presença de numerosos
cocos Gram-positivos isolados, aos
pares e em cadeias com morfologia
compatível com Streptococcus spp.
Fonte: Acervo do pesquisador.


























O resultado do Gram foi reportado imediatamente para o Médico Veterinário, que instituiu a seguinte terapia para o animal: Oxitetraciclina intramamária. Com base no resultado da coloração de Gram, o sedimento do leite foi semeado em Ágar Sangue de Carneiro e incubado por 24 horas à 35oC em ar enriquecido com 3-5% de CO2 (método da vela).  Após este período de incubação, a placa foi examinada pelo Microbiologista e o mesmo notou a presença de numerosas colônias β-hemolíticas no meio de cultivo. A imagem da placa é demonstrada abaixo:
Imagem 5: Colônias  β-hemolíticas em Ágar
Sangue de Carneiro.
Fonte: Acervo do pesquisador.



















Com base na morfologia da colônia (pequena zonas de  β-hemólise, que são melhores visualizadas quando se retira a colônia do meio de cultura), foi realizado do teste de catalase (que foi negativo no microrganismo testado), foi identificado que o germe em questão é um Streptocococcus spp. Para identificação da espécie, foi realizado o teste de CAMP (Que tem por finalidade a identificação de Streptococcus agalactiae). O teste de CAMP foi positivo e o microrganismo em questão foi identificado como Streptococcus agalactiae (grupo B).A imagem e a descrição do teste de CAMP são demonstradas abaixo:
Imagem 6: Teste de CAMP positivo. O teste visa a identificação
de cepas de Streptococcus agalactiae (grupo B). Estas cepas
produzem o fator CAMP (Christie, Atkins e Munch-Petersen) que
atua sinergicamente com a β-hemolisina produzida pelo 
Staphylococcus aureus em ágar Sangue.
A formação de uma seta ou meia-lua convergindo para o S.aureus
na intersecção do crescimento dos microrganismos é considerado
positivo e indicativo de Streptococcus agalactiae.
Fonte: Acervo do pesquisador.

























Após a identificação do microrganismo, foi realizado o teste de sensibilidade aos antimicrobianos com base nas orientações propostas pelo documento de consenso do EUCAST 2017. Foram testados os seguintes antimicrobianos: Penicilina G, Ampicilina, Ceftriaxona, Vancomicina, Eritromicina, Clindamicina, Levofloxacino e Tetraciclina. O Streptococcus agalactiae se apresentou sensível a todos os antimicrobianos testados, com exceção da Tetraciclina. Com base no resultado do teste de sensibilidade aos antimicrobianos, o Veterinário alterou o tratamento de Oxitetraciclina para Ampicilina intramamária, sendo que o animal ficou isolado dos demais durante todo o período de tratamento, sendo que o animal foi considerado curado da infecção após todo o período de tratamento.

DISCUSSÃO

1) Descreva a patogênese da mastite bovina.

R: Quando os microrganismos atingem o canal da glândula mamária, alojam-se nas paredes da glândula, multiplicam-se e se disseminam, primariamente, danificando o tecido que envolve os ductos coletores maiores do leite. Em resposta a essa agressão, para combater os microrganismos invasores, diversos leucócitos (neutrófilos, macrófagos e plasmócitos), passam do sangue circulante para o interior do úbere, tendo como função o combate a infecção bacteriana. Uma vez dentro do úbere, elas são chamadas de células somáticas e a resposta imunológica associada a virulência dos microrganismos, causam todos os efeitos da mastite.

2) No caso clínico citado acima, a mastite pode ser considerada como contagiosa ou ambiental?

R: O caso clínico acima retrata um caso clássico de mastite contagiosa.

3) Quais são as principais características que permitem a identificação do Streptococcus agalactiae?

R: Possuem o antígeno do grupo B (Classificação sorológica de Lancefield); São resistentes ao Sulfametoxazol + Trimetoprim e a Bacitracina e são positivos para o teste de CAMP.

4) Quais são os fatores de virulência deste microrganismo?

R: Cápsula: Os polissacarídeos capsulares são fatores de virulência essenciais em Streptococcus agalactiae, inibindo a fagocitose e a ativação do complemento na ausência de anticorpos específicos.
Proteínas da família Alp: Atuam na virulência de Streptococcus agalactiae por serem capazes de se ligar a células epiteliais do úbere bovino e induzir a produção de anticorpos protetores específicos.
Proteína C-beta: Esta proteína é capaz de se ligar à porção Fc de IgAs bovinas e apresenta propriedade ligante ao fator H do sistema complemento, sugerindo um papel importante na evasão do sistema imune pelo microrganismo.
Pili: Esses apêndices poliméricos parecem estar envolvidos com a adesão da bactéria às células hospedeiras, com a formação de biofilmes, além de conferir maior resistência a fagócitos e peptídeos antimicrobianos.
C5a peptidase: Presente na superfície do microrganismo que apresenta atividade de clivar e inativar o componente C5a de bovinos, um dos principais quimioatrativos para neutrófilos polimorfonucleares.
Hialuronidase: Hidrolisa o ácido hialurônico, facilitando a disseminação do microrganismo pelos tecidos do organismo infectado, devido ao aumento da permeabilidade tecidual.
Hemolisinas: Formam poros nas membranas das células, causando a lise de hemácias e leucócitos.
Fator CAMP: Considerado como fator de virulência devido à sua capacidade de se ligar as imunoglobulinas G e M, via fração Fc, inativando estas imunoglobulinas.

6) Quais são os mecanismos de resistência aos antimicrobianos encontrados nesta cepa?

R: Cepa com expressão fenotípica do gene tet(M) --> Bomba de efluxo que expulsa as Tetraciclinas do interior do microrganismo.



Imagem 7: Mecanismo de efluxo causado pelo gene
tet(M) em Streptococcus agalactiae.
A Tetraciclina é expulsa do interior do microrganismo,
causando desta forma uma concentração baixa do
antimicrobiano e o germe não é mais afetado pela droga.
Fonte: https://pt.slideshare.net/Douglasliciocampos/curso-antibiticos-e-resistncia-bacteriana-prof-alexsander-35904270




















7) Referências


  1. ANDREWS, A.H., et al. Medicina Bovina: Doenças e Criação de Bovinos. Segunda edição. São Paulo: Roca, 2008. 1080p.
  2. BLOWEY, R.; EDMONDSON, P. Mastitis: Causas, Epidemiologia y Conrol. Zaragoza: Acríbia, 1999, 39p.
  3. BRESSAN, M. Práticas de Manejo Sanitário em Bovinos de Leite. Juiz de Fora: Embrapa/CNPGL, 2000. 65p.
  4. FONSECA, L.F.L.; SANTOS, M.V. Qualidade do Leite e Controle da Mastite. São Paulo: Lemos, 2000. 314p.
  5. HIRSH, D.C.; ZEE, Y.C. Microbiologia Veterinária. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2009. 446p.

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