Fotografia 2: Gram de gota da paciente E.A.D.P. demonstrando a presença de numerosos bastonetes Gram-negativos e a
presença de leucócitos polimorfonucleares.
Fonte: Acervo do pesquisador.
A urina da paciente é semeada em ágar EMB modificado por Levine (sem a adição de sacarose ao meio) e incubada em estufa a 35oC em ar ambiente por 24 horas. No dia seguinte o Microbiologista observou o desenvolvimento de colônias lactose positivas no meio e encaminhou o microrganismo em questão para ser identificado bioquimicamente com o auxílio do meio de Rugai modificado por Pessoa e Silva.
A fotografia da placa de cultura da paciente é demonstrada abaixo:
Fotografia 3: Urina da paciente E.A.D.P. semeada em ágar EMB. Note as colônias
lactose postivias (com centro escuro).
Fonte: Acervo do pesquisador.
O microrganismo em questão é identificado como sendo uma Escherichia coli. Abaixo é possível observar a fotografia do teste bioquímico:
Fotografia 4: Meio de Rugai evidenciando a identificação de
Escherichia coli.
Fonte: Acervo do pesquisador.
Após a identificação do microrganismo, o Microbiologista realiza o teste de sensibilidade aos antimicrobianos de acordo com as normatizações do EUCAST. O Resultado do teste é demonstrado abaixo:
RESULTADO DE UROCULTURA
GERME ISOLADO: Escherichia coli
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CONTAGEM DE COLÔNIAS: >
100.000 UFC/mL
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TESTE
DE SENSIBILIDADE AOS ANTIMICROBIANOS
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ANTIMICROBIANO
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RESULTADO
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Amoxicilina + Ácido Clavulânico
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Resistente
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Ampicilina + Sulbactam
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Resistente
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Piperacilina + Tazobactam
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Sensível
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Ceftriaxona
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Sensível
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Ceftazidima
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Sensível
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Cefepime
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Sensível
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Meropenem
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Sensível
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Gentamicina
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Sensível
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Ciprofloxacino
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Resistente
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Levofloxacino
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Resistente
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Sulfametoxazol + Trimetoprim
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Resistente
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Nitrofurantoína
|
Sensível
|
A fotografia do antibiograma é demonstrada abaixo:
Fotografia 5: Teste de sensibilidade aos antimicrobianos
em uma cepa de Escherichia coli.
Fonte: Acervo do pesquisador.
Com base nas informações contidas nos exames, o médico prescreveu Nitrofurantoína 100 mg para a paciente. A mesma realizou o tratamento corretamente e ficou curada da infecção.
DISCUSSÕES
1) Como uma Cistite pode ser classificada como de repetição?
R: As infecções do trato urinário (ITUs) recorrentes são comuns, especialmente nas mulheres, independente da faixa etária. Para caracterizar uma ITU recorrente, a nova infecção deve ser causada por um agente diferente. Entretanto, como as infecções podem recorrer com o mesmo microrganismo, é muito difícil sem ferramentas moleculares avançadas caracterizar os quadros como recorrentes ou recidivantes somente com este critério. Em termos clínicos e práticos, caracteriza-se arbitrariamente o quadro como recidivante se a mesma bactéria é isolada dentro de 2 semanas do fim do tratamento. De tal forma, os episódios serão considerados recorrentes (nova infecção) se houver um intervalo superior a 2 semanas, mesmo com o isolamento do mesmo microrganismo. Outra forma prática de caracterizar recorrência, descartando persistência (recidiva), é a comprovação de uma cultura negativa entre os 2 episódios independente do intervalo.
2) Quais são as características bioquímicas que permitiram o microbiologista realizar a identificação da Escherichia coli?
R: Fermentação da lactose (+) --> Este microrganismo é capaz de fermentar a molécula de lactose através da ação de duas enzimas específicas em seu metabolismo. A primeira enzima que atua é denominada Betagalactosídeo permease (que atua na captação da molécula de lactose do meio extracelular para o meio intracelular através da membrana celular bacteriana, pois a maioria dos carboidratos como a lactose, não é capaz de atravessar a bicamada lípica sem uma proteína carreadora), e a segunda enzima que atua no metalobismo da lactose é a denominada Betagalactosidase (que é capaz de clivar a molécula de lactose em glicose e galactose que servirão como fonte de energia e carbono para o microrganismo).
Abaixo está uma imagem para exemplificar o metabolismo da lactose pela Escherichia coli
Fotografia 6: Ilustração do metabolismo da lactose por Escherichia coli
Fermentação da glicose (+) --> Este microrganismo é capaz de fermentar a molécula de glicose e produzir ácido e gás. A molécula de glicose é convertida em piruvato (um composto de três carbonos altamente energético) através da via de Embden Meyerhof (rota mais comum da glicólise nos microrganismos fermentadores). O piruvato é convertido em energia através da via dos ácidos mistos (com a produção de grande quantidade de ácidos mistos: Ácido Acético, Ácido Lático e Ácido Fórmico e pequena produção de gás). Do ponto de vista prático, este microrganismo é capaz de positivar o teste de Vermelho de Metila (indica a produção de grande quantidade de ácidos mistos) e é negativo para o teste de Voges Proskauer.
Abaixo está uma imagem para exemplificar a rota dos ácido mistos e o teste de vermelho de metila:
Fotografia 7: Ilustração da via de Embden-Meyerhof.
Fotografia 8: Ilustração do teste de Vermelho de Metila.
Fermentação da Sacarose (-)
Motilidade (+) --> Este microrganismo apresenta a expressão fenotípica do antígeno H (antígeno flagelar), sendo móvel por flagelo peritríquio (flagelo distribuído por todo o microrganismo). O flagelo é responsável pela locomoção do microrganismo pelo trato urinário por exemplo.
Abaixo está uma imagem para ilustrar o flagelo:
Fotografia 9: Ilustração do flagelo peritríquo em Escherichia coli.
Lisina (+) --> Este microrganismo é capaz de descarboxilar a Lisina em Cadaverina através da ação da enzima Lisina Descarboxilase (LDC).
Abaixo está uma imagem para demonstrar o metabolismo da lisina:
Fotografia 10: Ilustração do metabolismo da lisina.
Hidrólise da uréia (-)
Produção de H2S (-)
Fenilalanina desaminase (-)
Produção de indol (+) --> Este microrganismo é capaz de metabolizar o molécula de Triptofano através da ação da enzima Triptofanase em indol.
Abaixo está uma imagem para demonstrar o metabolismo do Triptofano:
Fotografia 11: Ilustração do metabolismo do Triptofano em indol.
3) Quais são os prováveis fatores de virulência encontrados nesta cepa de Escherichia coli uropatogênica?
R: Adesinas: Linhagens de UPEC expressam várias classes de adesinas que auxiliam UPEC na ligação a receptores específicos de células epiteliais do trato urinário. As adesinas do grupo fímbria P, fímbria tipo 1 e fímbria Dr que participam na colonização e desempenham um papel de extrema importância no desenvolvimento de ITU.
Fíbria P: Esta fímbria aumenta o potencial de virulência de UPEC em diversos estágios da patogênese da ITU. Linhagens que expressam a fímbria P conseguem penetrar de maneira mais eficiente no trato urinário e promovem bacteriúria e estimula a produção de citocinas, estimulando o sistema imunológico do hospedeiro mais rapidamente em comparação com linhagens que não expressam esta fímbria.
Fímbria Tipo 1: As fímbrias do tipo 1 são determinantes de virulência expressos pela maioria das linhagens de UPEC, sendo codificadas pelos genes Fim A, B, C e D. Estas fímbrias medeiam a ligação aos oligossacarídeos de manose presente nos receptores de células epiteliais do trato urinário do hospedeiro, favorecendo o desenvolvimento de biofilmes bacterianos e a invasão do tecido do trato urinário do hospedeiro. A ligação das fímbrias do tipo 1 a receptores presentes no epitélio do trato urinário é essencial para que ocorra a colonização da bexiga, promovendo a aderência bacteriana e consequente internalização das bactérias aderidas ao epitélio da bexiga, resultando na formação de biofilmes e comunidades bacterianas intracelulares, que atuam como reservatório, protegendo o microrganismo dos mecanismos de defesa do hospedeiro, levando ao desenvolvimento de ITU.
Fímbria Dr: As fímbrias Dr consistem em outro importante fator de virulência relacionado com a aquisição de ITU, pois linhagens de UPEC que expressam este tipo de fímbria apresentam um maior risco de recorrência da ITU, pois estas linhagens podem invadir e se multiplicar dentro de células epiteliais do trato urinário. As linhagens da bactéria que expressam estas fimbrias são capazes de aderir de forma difusa às células epiteliais do trato urinário e apresentam uma associação epidemiológica com linhagens de UPEC causadoras de ITU recorrentes.
Hemolisinas: Algumas linhagens de UPEC são capazes de sintetizar toxinas, como a α-hemolisina e fator necrosante citotóxico do tipo 1 (CNF1). Estas toxinas são capazes de causar toxicidade direta nas células do tecido epitelial do trato urinário, sendo responsáveis pela modulação da resposta inflamatória e estimulação da destruição das células, liberando nutrientes essenciais para a multiplicação da UPEC.
α-hemolisina: A α-hemolisina é uma proteína termo lábil capaz de lizar eritrócitos e que também apresenta efeitos tóxicos sobre outros tipos de células. A expressão de hemolisinas por linhagens de UPEC está relacionada diretamente com o aparecimento das formas clínicas mais graves de ITU. Esta proteína é uma toxina sintetizada por linhagens patogênicas, intestinais e extra-intestinais, de E. coli codificada por genes conhecidos como hlyCABD, que podem ser cromossômicas ou plasmidiais. A expressão de α-hemolisinas por UPEC é um dos principais responsáveis pela presença de infecções crônicas do trato urinário, pois também induz a lise de imunoglobulinas IgA presentes na mucosa do trato urinário do hospedeiro e inibe a resposta inflamatória e fagocitose pelos macrófagos.
Fator necrosante citotóxico do tipo 1 (CNF1): A real função de CNF-1 no desencadeamento da ITU ainda não está bem esclarecida, mas foi sugerido que esta seja responsável pela modulação da resposta dos leucócitos polimorfonucleares, diminuindo a capacidade de fagocitose e permitindo que o microrganismo consiga persistir no trato urinário. Esta proteína é codificada também em ilhas de patogenicidade e geralmente é expressa em associação com a α-hemolisina em linhagens de UPEC.
Sideróforos: Os sistemas de captação de ferro permitem que os microrganismos consigam captar o ferro solúvel presente no trato urinário do hospedeiro. A concentração de ferro solúvel no mesmo é muito baixa, sendo considerado um fator que limita a multiplicação da UPEC. A aquisição de ferro representa uma etapa essencial para a sobrevivência, multiplicação e patogenicidade de UPEC. Os microrganismos patogênicos, inclusive a UPEC, desenvolveram mecanismos para a aquisição e armazenamento de ferro. Estes sistemas são constituídos principalmente por aerobactina que é secretada para o meio e após a formação do complexo ferrosistema de captação são reabsorvidos pelo microrganismo para auxiliar na sua multiplicação no trato urinário.
4) Quais mecanismos de resistência aos antimicrobianos foram encontrados nesta cepa de UPEC?
Betalactâmicos
Produção de Betalactamase fenótipo blaTEM-1: A presente enzima pertence a classe molecular A de Ambler, sendo que sua atividade hidrolícia é inibida por Ácido Clavulânico. A produção de TEM-1 leva a hidrólise enzimática de Aminopenicilinas lábeis (Ampicilina e Amoxicilina) e em menor escala das Cefalosporinas de primeira geração (Cefalotina, Cefazolina, Cefalexina, Cefadroxil). No resultado do antibiograma foi possível observar que a cepa de Escherichia coli era resisten às associações de Amoxicilina + Ácido Clavulânico e Ampicilina + Sulbactam, como isso foi possível se esta enzima é inibida pela ação do inibidor???? A resistência a estas associações é explicável pela hiperexpressão da Betalactamase, o que leva a enzima a conseguir hidrolisar o antimicrobiano na presença do inibidor de Betalactamase.
Antimicrobianos afetados: Ampicilina, Amoxicilina, Amoxicilina + Ácido Clavulânico, Ampicilina + Sulbactam, Cefazolina, Cefalotina, Cefadroxil e Cefalexina.
Antimicrobianos não afetados: Piperacilina + Tazobactam, Ceftriaxona, Cefotaxima, Ceftazidima, Cefepime, Aztreonam, Imipenem, Meropenem e Ertapenem.
Fluoroquinolonas
Cepa com mutação na porção gyrA da enzima DNA girase: A presença de uma única mutação em alguma região do gene gyrA confere altos níveis de resistência ao Ácido Nalidíxico, mas não ao Ciprofloxacino, sendo necessário para o desenvolvimento de resistência plena às Fluoroquinolonas a aquisição de mutações adicionais no gene gyrA ou mutação no gene gyrB.
Antimicrobianos afetados: Norfloxacino, Ciprofloxacino, Levofloxacino, Ofloxacino e Ácido Nalidíxico.
Inibidores da síntese do Folato
Cepa com alteração de rota metabólica do PABA: A resistência ao Sulfametoxazol + Trimetoprim pode ser devido à:
- Alteração da enzima que utiliza o PABA (diidropteroatosintetase);
- Diminuição da permeabilidade bacteriana ou efluxo ativo da droga;
- Uso de via metabólica alternativa para o metabólito essencial ou produção aumentada do metabólito essencial ou antagonismo da droga.
5) Referências Bibliográficas:
- ALBINI, C.A. et al. Infecções urinárias: Uma abordagem multidisciplinar. Curitiba: Editora CRV, 2012, 764p.
- ROSSI, F., ANDREAZZI, D.B. Resistência bacteriana: Interpretando o antibiograma. São Paulo: Editora Atheneu, 2005, 118p.
- WASHINGTON, C.W.J., et al. Koneman: Diagnóstico microbiológico. Texto e atlas colorido. Sexta edição. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010, 1565p.
- TAVARES, W., LOPES, H.V., CASTRO, R., et al. SOCIEDADE BRASILEIRA DE INFECTOLOGIA; FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DEGINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA; SOCIEDADE BRASILEIRA DE NEFROLOGIA; SOCIEDADE BRASILEIRA DE UROLOGIA. Cistite Recorrente:Tratamento e Prevenção. Elaboração Final: 31 de Janeiro de 2011, p. 1-12, 2011. Disponível. em: http://www.projetodiretrizes.org.br/ans/diretrizes/cistite_recorrentetratamento_e_prevencao.pdf
- TENAILLON, O., SKURNIK, D. PICARD, B. et al. The population genetics of commensal Escherichia coli. Nature Reviews, v. 8, p. 207-217, 2010.
- TIBA, M.R. & NOGUEIRA, G.P. & LEITE, D.S. Estudo dos fatores de virulência associados à formação de biofilme e agrupamento filogenético em Escherichia coli isoladas de pacientes com cistite. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, ed. 42, n. 1, p. 58-62, 2009.
- WILES, T.J. & KULESUS, R.R. & MULVEY, M.A. Origins and virulence mechanisms of uropathogenic Escherichia coli. Experimental and Molecular Pathology.v.85, p. 11-19, 2008.
- YAMAMOTO, S. Molecular epidemiology of uropathogenic Escherichia coli. Journal of Infection and Chemoterapy. v. 13, p. 68-73, 2007.
- SILVA, M.V. Infecções do trato urinário por Escherichia coli uropatogênica: Uma revisão. Belo Horizonte, 2012. Disponível em: http://www.microbiologia.icb.ufmg.br/pos/monografias/261.PDF
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