quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Meningite

INTRODUÇÃO

As infecções mais comuns do sistema nervoso central (SNC) são a encefalite (infecção do cérebro), a mielite (infecção da medula espinhal), a encefalomielite e a meningite (infecção da membrana que cobre o cérebro e a medula espinhal). Em geral, tanto a meningite quanto a encefalite (meningoencefalite) são parte do mesmo processo infeccioso. Menos comumente, as infecções adjacentes de tecido mole (ex: abscessos epidurais) e osso (osteomielite) podem atingir o sistema nervoso.
A meningite é mais prevalente em alguns grupos etários ou em pacientes com várias doenças subjacentes. A meningite no neonato resulta mais comumente de infecção que é adquirida da mãe no útero ou durante o parto vaginal. Streptococcus agalactiae e Escherichia coli são os microrganismos mais comumente isolados. Neisseria meningitidis causa infecção em todos os grupos etários. Haemophilus influenzae tipo B era a causa mais comum de meningite bacteriana aguda no grupo etário de 6 meses a 5 anos de idade, mas essa doença foi praticamente erradicada por uma vacinação efetiva. A meningite por Streptococcus pneumoniae resulta de bacteremia ou extensão da infecção dos seios da face (sinusite).
A meningite viral em todos os grupos etários é causada principalmente por enterovírus. Cryptococcus neoformans, Listeria monocytogenes e Mycobacterium tuberculosis causam formas crônicas de meningite tanto em pacientes sadios quanto naqueles com alterações de imunidade (HIV positivos, tratamento de câncer, etc.).
O pesquisador relata o caso de um paciente com quadro de meningite bacteriana aguda causada por Neisseria meningitidis e que evoluiu de forma forma abrupta para meningococcicemia e óbito. 

RELATO DO CASO

Uma criança de 7 anos, previamente hígida foi internada em uma instituição de saúde localizada no município de Timóteo-MG com história de febre alta, crises convulsivas e delírios. Na avaliação médica a criança apresentava-se com febre alta, dificuldade para encostar o queixo no peito e presença de manchas púrpuras por todo o corpo. Rapidamente o pediatra têm a suspeita clínica de meningite e realiza punção lombar para análise do LCR (líquido cefalorraquidiano) e solicita a coleta de hemocultura, hemograma e gasometria. Após a coleta dos exames é administrado uma dose elevada de Rocefin (Ceftriaxona) para a criança como tratamento de escolha. O paciente evolui com dificuldade respiratória e acidose metabólica (Saturação de O2 de 89%) e pH sanguíneo de 6,96. O pediatra realiza a intubação da criança (ventilação mecânica) como manejo para tentar corrigir a saturação de oxigênio e é administrado bicarbonato para corrigir o pH sanguíneo. Mesmo com todo o suporte terapêutico oferecido a criança, a mesma veio ao óbito após 24 horas de internação.
Ao receber o líquor para análise laboratorial o Microbiologista percebe que o material entrava-se turvo e Xantocrômico (aspecto amarelado), ao exame microscópico foi possível observar a presença de numerosas células com aspecto sugestivo de neutrófilos poliformonucleares. Parte do material foi separada para centrifugação para realização de coloração de Gram, pesquisa de fungos (técnica de Naquim) e pesquisa de parasitas (Angiostrongylus cantonensis).
Abaixo é demonstrado o resultado da análise citológica e química do líquor:

RESULTADO DE ANÁLISE DO LÍQUOR

ANALITO
RESULTADO
VALOR DE REFERÊNCIA
COR
XANTOCRÔMICO
INCOLOR
ASPECTO
TURVO
LÍMPIDO
CITOMETRIA
6.000 células/mm3
0-5 células/mm3
CITOLOGIA
POLIMORFONUCLEARES
MONONUCLEARES

100%
0%

0%
100%
GLICOSE
2 mg%
2/3 da glicose sanguínea
PROTEÍNAS
450 mg%
10-45 mg%
PESQUISA DE FUNGOS
NEGATIVO
NEGATIVO
PESQUISA DE BAAR
NEGATIVO
NEGATIVO
PESQUISA DE EOSINÓFILOS
NEGATIVO
NEGATIVO
PESQUISA DE PARASITAS
NEGATIVO
NEGATIVO
Após o líquor ser centrifugado, foi realizado a coloração de Gram, onde foi observado a presença de numerosos leucócitos polimorfonucleares e a presença de frequentes diplococos Gram-negativos com morfologia sugestiva de Neisseria meningitidis.

Abaixo é demonstrado o uma fotografia da coloração de Gram:
Imagem 1: Coloração de Gram de líquor evidenciando
a presença de numerosos leucócitos polimorfonucleares
e a presença de diplococos Gram-negativos intracelulares
sugestivos de Neisseria meningitidis.
Fonte: Acervo do pesquisador.























O sedimento do líquor foi semeado em ágar sangue de carneiro e incubado em microaerofilia (presença de 3 a 5% de CO2 pelo método da vela) a 35oC por 48 horas.  Após este período a placa foi analisada e notou-se a presença de colônias convexas, transparentes, não pigmentadas e não hemolíticas.

Abaixo é demonstrado uma fotografia da placa de ágar sangue com o crescimento bacteriano:
Imagem 2: Crescimento de Neisseria meningitidis
em ágar sangue de carneiro.
Fonte: Acervo do pesquisador.
























Após o isolamento do microrganismo foram realizados os seguintes testes bioquímicos para identificação do mesmo: Teste de catalase, teste de oxidase, teste de utilização de glicose, maltose, lactose e sacarose. O teste de catalase foi positivo, oxidase positivo e os únicos carboidratos utilizados pelo microrganismo foram: Glicose e Maltose, sendo que desta forma o germe foi identificado como Neisseria meningitidis.

Abaixo estão demonstrados imagens dos testes utilizados para identificação do meningococo:
Imagem 3: Coloração de Gram do crescimento em ágar sangue.
Note a presença de diplococos Gram-negativos em forma de "grão
de feijão".
Fonte: Acervo do pesquisador.






















Imagem 4: Teste de catalase positivo.
Fonte: Acervo do pesquisador.











Imagem 5: Teste de oxidase positivo.
A: Microrganismo testado.
B: Swab apenas com o reagente (controle negativo).
Fonte: Acervo do pesquisador.
















Imagem 6: Teste de utilização de glicose e maltose
positivo em Neisseria meningitidis.
Fonte: Acervo do pesquisador.





















A cepa de Neisseria meningitidis foi submetida ao teste de sensibilidade aos antimicrobianos de acordo com as normatizações do CLSI, sendo preparada uma suspensão do microrganismo em salina estéril compatível com a escala 0,5 de MacFarland. A suspensão foi inoculada em meio de ágar Mueller Hinton acrescido com 5% de sangue de carneiro, sendo testado os seguintes antimicrobianos pela metodologia de Kirby-Bauer (disco-difusão): Ceftriaxona, Cefotaxima, Ciprofloxacino (para fins de descolonização de portadores assintomáticos), Cloranfenicol e Rifampicina (para fins de descolonização de portadores assintomáticos), sendo esta cepa sensível a todos os antimicrobianos testados.
A hemocultura revelou o crescimento do mesmo microrganismo isolado na cultura do líquor.
Com base neste resultado, todos os contactantes próximos a criança (que tiveram contato íntimo), foram tratados com Rifampicina, de acordo com as normatizações propostas pela ANVISA.
Este microrganismo foi encaminhado para a Fundação Ezequiel Dias (FUNED), para que se realizasse para fins epidemiológicos a sorotipagem capsular do microrganismo, sendo mesmo classificado com Neisseria meningitidis sorotipo Y.

DISCUSSÃO

1) Quais são os principais fatores de virulência encontrados em Neisseria meningitidis?

R: Os principais fatores de virulência encontrados em cepas de Neisseria meningitidis são:

  • Cápsula: As cepas de Neisseria meningitidis são, frequentemente, encapsuladas, e foram descritos até hoje 13 diferentes sorogrupos capsulares identificados como: A, B, C, D, H, I, K, L, W135, X, Y, Z e 29E. Com exceção do polissacarídio do grupo A, essas moléculas são compostas de derivados do ácido N-acetilneuramínico (ácido siálico). O polissacarídio capsular do grupo A é composto por unidades repetidas de N-acetil-manosamina-1-fosfato-α-ligado. Os polissacarídios capsulares dos meningococos impedem que os fagócitos destruam os microrganismo e aumentam sua sobrevida durante a invasão da corrente sanguínea e do SNC (sistema nervoso central). 
  • Lipooligossacarídios (LOS): O LOS de Neisseria meningitidis estimula a liberação do TNF-α, resultando em lesão adicional na célula do hospedeiro.
  • Fímbrias (Pili): As fímbrias medeiam a inserção dos microrganismos nas células da mucosa da nasofaringe. 
  • Proteína de aquisição/ligação do ferro: Neisseria meningitidis desenvolveu mecanismos únicos para a aquisição de ferro. Três sistemas de transporte de dois componentes, denominados TbpA/TbpB, LpbA/LpbB e HpuA/HpuB estão envolvidos na aquisição de ferro a partir de transferrina, lactoferrina e hemoglobina/haptoglobina humanas, respectivamente.
  • IgA1 protease: Foi postulado que essa protease atua como fator de virulência ao destruir a imunidade da mucosa.
  • Plasmídios: Os plasmídios não são comuns em Neisseria meningitidis. Entretanto cepas resistentes a Tetraciclina contêm o mesmo plasmídio carreador de 25,2 Mda tetM que é encontrado em Neisseria gonorrhoeae resistente a Tetraciclina. Os plasmídios codificadores de β-lactamase provenientes de Neisseria gonorrhoeae também podem ser transferidos in vitro para Neisseria meningitidis pelo plasmídio de 24,5 ou 25,2 Mda encontrado em alguns gonococos.
Abaixo está demonstrado uma ilustração sobre os fatores de virulência de Neisseria meningitidis:
Imagem 6: Fatores de virulência de Neisseria meningitidis.
Fonte: https://pt.slideshare.net/klary211/neisseria-meningitidis-29189725

















2) Descreva o processo de patogênese da Neisseria meningitidis.

R: A colonização da superfície das mucosas das vias respiratórias superiores pelo meningococo é o primeiro passo para o estabelecimento do estado de portador, que pode variar de dias a meses e, mais infrequentemente, desencadear a doença meningocócica. A transmissão ocorre entre humanos através de gotículas respiratórias e secreções, mas o tamanho do inóculo para transmissão ainda é desconhecido. A colonização do trato respiratório pelo meningococo pode se dar de forma assintomática, ou pode ocasionar uma reação inflamatória local, invasão das mucosas, invasão da corrente sanguínea, podendo provocar uma sepse fulminante ou uma infecção focal como a meningite.

Abaixo está demonstrado uma ilustração sobre a patogênese de Neisseria meningitidis:


Imagem 7: Patogênese de Neisseria meningitidis.
Fonte: https://es.slideshare.net/ximenoide1111/neisseria-meningitidis-13260370

















3) Como se realiza o diagnóstico laboratorial da doença meningocócica?

R: O diagnóstico laboratorial da doença meningocócica é realizado por exame bacterioscópico do LCE (líquido cefalorraquidiano) corado pelo método de Gram e através do cultivo deste, ou de outro fluido orgânico usualmente estéril, como sangue, líquido sinovial, pleural ou pericárdico, para isolamento e a identificação do meningococo. Pode-se ainda utilizar raspado ou aspirado das lesões cutâneas (petéquia ou púrpura), típicas da meningococcemia.

4) Referências


  1. ANVISA. Detecção e Identificação de Bactérias de Importância Médica. Módulo 5. Disponível em: http://www.anvisa.gov.br/servicosaude/microbiologia/mod_5_2004.pdf
  2. MURRAY, P.R et al. Microbiologia Médica. Sexta edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, 948p.
  3. SALOMÃO, R., PIGNATARI, A.C.C. Infectologia. Barueri: Manole, 2006, 580p.
  4. TRABULSI L.R., ALTERTHUM, F. Microbiologia. sexta edição. São Paulo: Atheneu, 2015, 888p.
  5. WASHINGTON, C.W. et al. Koneman: Diagnóstico Microbiológico. Texto e Atlas Colorido. Sexta edição. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010, 1565p.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Gastroenterite

INTRODUÇÃO

As diarréias agudas infecciosas constituem um dos maiores problemas de saúde em todo o mundo, mesmo em países desenvolvidos, e são responsáveis por um grande contingente de hospitalizações e óbitos. Seu diagnóstico é relativamente fácil em razão das características clínicas de sua apresentação.
A gastroenterite manifesta-se normalmente através de diarreia e vômitos, e menos frequentemente através de apenas um dos sintomas. Podem também ocorrer cólicas abdominais. Os sintomas têm normalmente início entre 12 a 72 horas depois de se contrair o agente infeccioso. Quando tem origem viral, a doença desaparece normalmente ao fim de uma semana.  Alguns agentes virais podem estar na origem de sintomas associados como febre, fadiga, dores de cabeça e dores musculares. No caso das fezes conterem sangue, é pouco provável que a causa seja viral e muito provável que seja bacteriana. Algumas infecções bacterianas podem estar associadas a cólicas abdominais muito intensas e podem persistir por várias semanas. 
A gastroenterite pode ser provocada por uma série de protozoários, sobretudo pela Giardia lamblia, mas também por Entamoeba histolytica e pelas espécies de Cryptosporidium. No total, estes agentes são responsáveis por cerca de 10% dos casos em crianças. A Giardia é mais frequente nos países em desenvolvimento, mas este agente etiológico está na origem de infecções praticamente em qualquer região. É, no entanto, mais comum em pessoas que tenham viajado para regiões com grande prevalência do parasita, em crianças que frequentam jardins de infância, relações homossexuais e na sequência de desastres.

CASO CLÍNICO

Y.S.C., sexo feminino, 1 ano de idade, previamente hígida, é levada por sua mãe a uma instituição de saúde localizada no município de Coronel Fabriciano-MG, com quadro relatado pela mãe de diarréia de cor levemente esverdeada, cólicas abdominais e irritabilidade. No acolhimento da enfermagem a mãe relata que a criança estava bem a uma semana atrás, mas relata que ela e a criança estiveram na zona rural de Coronel Fabriciano e consumiram a água do poço artesiano não filtrada, com base nestes sintomas a Enfermeira encaminha a mãe e a criança para a consulta com o pediatra de plantão. No exame clínico o pediatra nota que a criança está desidratada e irritativa, como tratamento de suporte é administrado soro endovenoso para a criança. O pediatra solicita os seguintes exames: Coprocultura (Cultura bacteriana das fezes), pesquisa de leucócitos fecais, pesquisa de sangue oculto nas fezes e exame parasitológico de fezes (EPF).
A amostra fecal é encaminhada para o laboratório de análises clínicas para a realização dos exames solicitados. Os exames de coprocultura, pesquisa de leucócitos fecais e pesquisa de sangue oculto nas fezes foram todos normais. Mas no exame EPF foi visualizado estruturas císticas com morfologia compatível com Giardia lamblia. 

A foto do exame parasitológico de fezes é demonstrada abaixo:
Figura 1: Giardia lamblia em amostra de
fezes da paciente Y.S.C.
Fonte: Acervo do pesquisador.






















Com base nos resultados dos exames, o pediatra tratou a paciente com Metronidazol e a mesma ficou curada da infecção.

DISCUSSÃO

1) Qual o ciclo biológico da Giardia lamblia?

R: O ciclo biológico da Giardia lamblia é relativamente simples. Os trofozoítos multiplicam-se por divisão binária longitudinal. Permanecem aderidos à mucosa intestinal, mas periodicamente vão se desprendendo e durante o trajeto intestinal perdem os flagelos, criam uma parede cística e há divisão nuclear, de tal forma que no intestino grosso já estão presentes os cistos tetranucleados, que são eliminados junto com as fezes. Essa eliminação de cistos não é constante, podendo haver "períodos negativos" de 2,5 e até 7 dias, quando então o processo é retomado. Esse detalhe de haver "período negativo de eliminação de cistos" pode interferir no diagnóstico, pois um exame de fezes nesse período pode resultar em "falso negativo".

Abaixo está demonstrado uma ilustração do ciclo biológico da Giardia lamblia:
Figura 2: Ciclo biológico da Giardia lamblia.
Fonte: http://cursodominiopa.blogspot.com.br






















2) Como é a morfologia do parasita?

R: A Giardia lamblia apresenta duas formas típicas: o trofozoíto e o cisto.
Trofozoíto: Os trofozoítos apresentam simetria bilateral, com dois núcleos e oito flagelos; têm o aspecto de "pêra", com duas superfícies: ventral e dorsal. Na superfície ventral encontra-se um "disco suctorial" ou "ventosa", com a qual o protozoário permanece aderido à mucosa intestinal. O trofozoíto mede cerca de 20 micrômetros de comprimento por 10 de largura.

Abaixo está demonstrado uma ilustração do trofozoíto de Giardia lamblia:
Figura 3: Morfologia do trofozoíto de Giardia lamblia corado
com lugol.
Fonte: http://giardiasis2013.blogspot.com.br

















Cisto: Os cistos, de aparência oval, são encontrados nas fezes já formadas. Possuem quatro núcleos e medem cerca de 12 micrômetros de comprimento por 8 de largura.

Abaixo está demonstrado uma ilustração do cisto de Giardia lamblia:
Figura 4: Morfologia do cisto de Giardia lamblia corado
com lugol.
fonte: http://www.biomedicinapadrao.com.br



























3) Quais são os sintomas desta infecção?

R: As manifestações clínicas mais frequentes da giardíase são:


  • Dor na porção alta e direita do abdome;
  • Irritabilidade, emagrecimento, perda de apetite, perda de sono e diarreia esverdeada (esteatorreia = diarreia gordurosa)
4) Como é realizada a profilaxia desta infecção?

R: A essência da profilaxia da giardíase consiste em: 

  • Tratamento da fonte de infecção (isto é: dos humanos positivos);
  • Existência de um bom sistema de tratamento do esgoto doméstico;
  • Distribuição de água potável;
  • Higienização de verduras e das mãos;
  • Exames de fezes periódicos dos manipuladores de alimentos;
  • Educação sanitária, cívica e ambiental da população.
5) Referência bibliográficas

  1. NEVES, D.P., FILIPPIS, T. Parasitologia básica. 2 edição. São Paulo: Atheneu, 2010.196p.











































segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Infecção urinária (ITU) de repetição

E.A.D.P., sexo feminino, 73 anos de idade, procura assistência médica em um posto de saúde localizado no município de Timóteo-MG, com quadro de disúria (dor ao urinar), emergência miccional (vontade excessiva de urinar) e urina com odor fétido. A paciente relata no acolhimento de enfermagem que esta é a sexta infecção urinária que ela apresenta neste ano. Ao exame clínico o médico realiza o diagnóstico de cistite simples (infecção urinária) e prescreve para a paciente o antimicrobiano Ciprofloxacino 500 mg e encaminha a paciente para casa sem solicitar nenhum exame complementar. A paciente realiza o tratamento corretamente, mas não apresenta melhora clínica dos sintomas. A paciente novamente procura assistência médica no mesmo posto de saúde e relata que não houve melhora dos sintomas durante o tratamento. O clínico de plantão realiza o mesmo diagnóstico do médico anterior, porém solicita que a paciente realize os exames de urina rotina (EAS), Gram de gota e urocultura.
E.A.D.P. realiza a coleta de urina com orientação do Microbiologista de plantão em um laboratório localizado no mesmo município. O Microbiologista realiza os exames solicitados e o resultado dos mesmos são demonstrados abaixo:

ROTINA DE URINA (EAS)

ANALITO
RESULTADO
REFERÊNCIA
COR
AMARELO
AMARELO
ASPECTO
TURVO
LÍMPIDO
ODOR
FÉTIDO
SUI GENERIS
pH
6,0
5,0-6,0
GLICOSE
AUSENTE
AUSENTE
PROTEÍNA
AUSENTE
AUSENTE
BILIRRUBINA
AUSENTE
AUSENTE
HEMOGLOBINA
AUSENTE
AUSENTE
NITRITO
POSITIVO
NEGATIVO
CÉLULAS
RARAS P/C
RARAS P/C
LEUCÓCITOS
CAMPOS REPLETOS
ATÉ 5 P/C
HEMÁRIAS
RARAS P/C
AUSENTE
CRISTAIS
AUSENTE
AUSENTE
CILINDROS
AUSENTE
AUSENTE
BACTÉRIAS
FLORA AUMENTADA
FLORA ESCASSA
MUCO
MODERADO
ESCASSO

Abaixo está uma fotografia do sedimento urinário:
Fotografia 1: Sedimento urinário da paciente E.A.D.P. demonstrando a presença
de numerosos leucócitos e presença de numerosas bactérias.
Fonte: Acervo do pesquisador.

O resultado do Gram de gota é demonstrado abaixo:

GRAM DE GOTA (BACTERIOSCOPIA)

RESULTADO
REFERÊNCIA
*PRESENÇA DE NUMEROSOS LEUCÓCITOS POLIMORFONUCLEARES;
*PRESENÇA DE NUMEROSOS BASTONETES GRAM-NEGATIVOS
AUSÊNCIA DE MICRORGANISMOS.
Abaixo está uma fotografia do Gram de gota:
Fotografia 2: Gram de gota da paciente E.A.D.P. demonstrando a presença de numerosos bastonetes Gram-negativos e a
presença de leucócitos polimorfonucleares.
Fonte: Acervo do pesquisador.


A urina da paciente é semeada em ágar EMB modificado por Levine (sem a adição de sacarose ao meio) e incubada em estufa a 35oC em ar ambiente por 24 horas. No dia seguinte o Microbiologista observou o desenvolvimento de colônias lactose positivas no meio e encaminhou o microrganismo em questão para ser identificado bioquimicamente com o auxílio do meio de Rugai modificado por Pessoa e Silva.

A fotografia da placa de cultura da paciente é demonstrada abaixo:
Fotografia 3: Urina da paciente E.A.D.P. semeada em ágar EMB. Note as colônias
lactose postivias (com centro escuro).
Fonte: Acervo do pesquisador.


O microrganismo em questão é identificado como sendo uma Escherichia coli. Abaixo é possível observar a fotografia do teste bioquímico:























Fotografia 4: Meio de Rugai evidenciando a identificação de 
Escherichia coli.
Fonte: Acervo do pesquisador.



Após a identificação do microrganismo, o Microbiologista realiza o teste de sensibilidade aos antimicrobianos de acordo com as normatizações do EUCAST. O Resultado do teste é demonstrado abaixo:


RESULTADO DE UROCULTURA

GERME ISOLADO: Escherichia coli
CONTAGEM DE COLÔNIAS: > 100.000 UFC/mL
TESTE DE SENSIBILIDADE AOS ANTIMICROBIANOS
ANTIMICROBIANO
RESULTADO
Amoxicilina + Ácido Clavulânico
Resistente
Ampicilina + Sulbactam
Resistente
Piperacilina + Tazobactam
Sensível
Ceftriaxona
Sensível
Ceftazidima
Sensível
Cefepime
Sensível
Meropenem
Sensível
Gentamicina
Sensível
Ciprofloxacino
Resistente
Levofloxacino
Resistente
Sulfametoxazol + Trimetoprim
Resistente
Nitrofurantoína
Sensível

A fotografia do antibiograma é demonstrada abaixo:























Fotografia 5: Teste de sensibilidade aos antimicrobianos
em uma cepa de Escherichia coli.
Fonte: Acervo do pesquisador.



Com base nas informações contidas nos exames, o médico prescreveu Nitrofurantoína 100 mg para a paciente. A mesma realizou o tratamento corretamente e ficou curada da infecção.


DISCUSSÕES


1)  Como uma Cistite pode ser classificada como de repetição?


R: As infecções do trato urinário (ITUs) recorrentes são comuns, especialmente nas mulheres, independente da faixa etária. Para caracterizar uma ITU recorrente, a nova infecção deve ser causada por um agente diferente. Entretanto, como as infecções podem recorrer com o mesmo microrganismo, é muito difícil sem ferramentas moleculares avançadas caracterizar os quadros como recorrentes ou recidivantes somente com este critério. Em termos clínicos e práticos, caracteriza-se arbitrariamente o quadro como recidivante se a mesma bactéria é isolada dentro de 2 semanas do fim do tratamento. De tal forma, os episódios serão considerados recorrentes (nova infecção) se houver um intervalo superior a 2 semanas, mesmo com o isolamento do mesmo microrganismo. Outra forma prática de caracterizar recorrência, descartando persistência (recidiva), é a comprovação de uma cultura negativa entre os 2 episódios independente do intervalo.

2) Quais são as características bioquímicas que permitiram o microbiologista realizar a identificação da Escherichia coli? 

R: Fermentação da lactose (+) --> Este microrganismo é capaz de fermentar a molécula de lactose através da ação de duas enzimas específicas em seu metabolismo. A primeira enzima que atua é denominada Betagalactosídeo permease (que atua na captação da molécula de lactose do meio extracelular para o meio intracelular através da membrana celular bacteriana, pois a maioria dos carboidratos como a lactose, não é capaz de atravessar a bicamada lípica sem uma proteína carreadora), e a segunda enzima que atua no metalobismo da lactose é a denominada Betagalactosidase (que é capaz de clivar a molécula de lactose em glicose e galactose que servirão como fonte de energia e carbono para o microrganismo).
Abaixo está uma imagem para exemplificar o metabolismo da lactose pela Escherichia coli





















Fotografia 6: Ilustração do metabolismo da lactose por Escherichia coli

Fermentação da glicose (+) --> Este microrganismo é capaz de fermentar a molécula de glicose e produzir ácido e gás. A molécula de glicose é convertida em piruvato (um composto de três carbonos altamente energético) através da via de Embden Meyerhof (rota mais comum da glicólise nos microrganismos fermentadores). O piruvato é convertido em energia através da via dos ácidos mistos (com a produção de grande quantidade de ácidos mistos: Ácido Acético, Ácido Lático e Ácido Fórmico e pequena produção de gás). Do ponto de vista prático, este microrganismo é capaz de positivar o teste de Vermelho de Metila (indica a produção de grande quantidade de ácidos mistos) e é negativo para o teste de Voges Proskauer.
Abaixo está uma imagem para exemplificar a rota dos ácido mistos e o teste de vermelho de metila:


















Fotografia 7: Ilustração da via de Embden-Meyerhof.






















Fotografia 8: Ilustração do teste de Vermelho de Metila.

Fermentação da Sacarose (-)

Motilidade (+) --> Este microrganismo apresenta a expressão fenotípica do antígeno H (antígeno flagelar), sendo móvel por flagelo peritríquio (flagelo distribuído por todo o microrganismo). O flagelo é responsável pela locomoção do microrganismo pelo trato urinário por exemplo.
Abaixo está uma imagem para ilustrar o flagelo:





























Fotografia 9: Ilustração do flagelo peritríquo em Escherichia coli.

Lisina (+) --> Este microrganismo é capaz de descarboxilar a Lisina em Cadaverina através da ação da enzima Lisina Descarboxilase (LDC).
Abaixo está uma imagem para demonstrar o metabolismo da lisina:
















Fotografia 10: Ilustração do metabolismo da lisina.

Hidrólise da uréia (-)

Produção de H2S (-)

Fenilalanina desaminase (-)

Produção de indol (+) --> Este microrganismo é capaz de metabolizar o molécula de Triptofano através da ação da enzima Triptofanase em indol.
Abaixo está uma imagem para demonstrar o metabolismo do Triptofano:




















Fotografia 11: Ilustração do metabolismo do Triptofano em indol.

3) Quais são os prováveis fatores de virulência encontrados nesta cepa de Escherichia coli uropatogênica?

R: Adesinas: Linhagens de UPEC expressam várias classes de adesinas que auxiliam UPEC na ligação a receptores específicos de células epiteliais do trato urinário. As adesinas do grupo fímbria P, fímbria tipo 1 e fímbria Dr que participam na colonização e desempenham um papel de extrema importância no desenvolvimento de ITU.

Fíbria P: Esta fímbria aumenta o potencial de virulência de UPEC em diversos estágios da patogênese da ITU. Linhagens que expressam a fímbria P conseguem penetrar de maneira mais eficiente no trato urinário e promovem bacteriúria e estimula a produção de citocinas, estimulando o sistema imunológico do hospedeiro mais rapidamente em comparação com linhagens que não expressam esta fímbria.

Fímbria Tipo 1: As fímbrias do tipo 1 são determinantes de virulência expressos pela maioria das linhagens de UPEC, sendo codificadas pelos genes Fim A, B, C e D. Estas fímbrias medeiam a ligação aos oligossacarídeos de manose presente nos receptores de células epiteliais do trato urinário do hospedeiro, favorecendo o desenvolvimento de biofilmes bacterianos e a invasão do tecido do trato urinário do hospedeiro. A ligação das fímbrias do tipo 1 a receptores presentes no epitélio do trato urinário é essencial para que ocorra a colonização da bexiga, promovendo a aderência bacteriana e consequente internalização das bactérias aderidas ao epitélio da bexiga, resultando na formação de biofilmes e comunidades bacterianas intracelulares, que atuam como reservatório, protegendo o microrganismo dos mecanismos de defesa do hospedeiro, levando ao desenvolvimento de ITU.

Fímbria Dr: As fímbrias Dr consistem em outro importante fator de virulência relacionado com a aquisição de ITU, pois linhagens de UPEC que expressam este tipo de fímbria apresentam um maior risco de recorrência da ITU, pois estas linhagens podem invadir e se multiplicar dentro de células epiteliais do trato urinário. As linhagens da bactéria que expressam estas fimbrias são capazes de aderir de forma difusa às células epiteliais do trato urinário e apresentam uma associação epidemiológica com linhagens de UPEC causadoras de ITU recorrentes.

Hemolisinas: Algumas linhagens de UPEC são capazes de sintetizar toxinas, como a α-hemolisina e fator necrosante citotóxico do tipo 1 (CNF1). Estas toxinas são capazes de causar toxicidade direta nas células do tecido epitelial do trato urinário, sendo responsáveis pela modulação da resposta inflamatória e estimulação da destruição das células, liberando nutrientes essenciais para a multiplicação da UPEC.

α-hemolisina: A α-hemolisina é uma proteína termo lábil capaz de lizar eritrócitos e que também apresenta efeitos tóxicos sobre outros tipos de células. A expressão de hemolisinas por linhagens de UPEC está relacionada diretamente com o aparecimento das formas clínicas mais graves de ITU. Esta proteína é uma toxina sintetizada por linhagens patogênicas, intestinais e extra-intestinais, de E. coli codificada por genes conhecidos como hlyCABD, que podem ser cromossômicas ou plasmidiais. A expressão de α-hemolisinas por UPEC é um dos principais responsáveis pela presença de infecções crônicas do trato urinário, pois também induz a lise de imunoglobulinas IgA presentes na mucosa do trato urinário do hospedeiro e inibe a resposta inflamatória e fagocitose pelos macrófagos.

 Fator necrosante citotóxico do tipo 1 (CNF1): A real função de CNF-1 no desencadeamento da ITU ainda não está bem esclarecida, mas foi sugerido que esta seja responsável pela modulação da resposta dos leucócitos polimorfonucleares, diminuindo a capacidade de fagocitose e permitindo que o microrganismo consiga persistir no trato urinário. Esta proteína é codificada também em ilhas de patogenicidade e geralmente é expressa em associação com a α-hemolisina em linhagens de UPEC. 

Sideróforos: Os sistemas de captação de ferro permitem que os microrganismos consigam captar o ferro solúvel presente no trato urinário do hospedeiro. A concentração de ferro solúvel no mesmo é muito baixa, sendo considerado um fator que limita a multiplicação da UPEC. A aquisição de ferro representa uma etapa essencial para a sobrevivência, multiplicação e patogenicidade de UPEC. Os microrganismos patogênicos, inclusive a UPEC, desenvolveram mecanismos para a aquisição e armazenamento de ferro. Estes sistemas são constituídos principalmente por aerobactina que é secretada para o meio e após a formação do complexo ferrosistema de captação são reabsorvidos pelo microrganismo para auxiliar na sua multiplicação no trato urinário.

4) Quais mecanismos de resistência aos antimicrobianos foram encontrados nesta cepa de UPEC?


Betalactâmicos

Produção de Betalactamase fenótipo blaTEM-1: A presente enzima pertence a classe molecular A de Ambler, sendo que sua atividade hidrolícia é inibida por Ácido Clavulânico. A produção de TEM-1 leva a hidrólise enzimática de Aminopenicilinas lábeis (Ampicilina e Amoxicilina) e em menor escala das Cefalosporinas de primeira geração (Cefalotina, Cefazolina, Cefalexina, Cefadroxil). No resultado do antibiograma foi possível observar que a cepa de Escherichia coli era resisten às associações de Amoxicilina + Ácido Clavulânico e Ampicilina + Sulbactam, como isso foi possível se esta enzima é inibida pela ação do inibidor???? A resistência a estas associações é explicável pela hiperexpressão da Betalactamase, o que leva a enzima a conseguir hidrolisar o antimicrobiano na presença do inibidor de Betalactamase.
Antimicrobianos afetados: Ampicilina, Amoxicilina, Amoxicilina + Ácido Clavulânico, Ampicilina + Sulbactam, Cefazolina, Cefalotina, Cefadroxil e Cefalexina.
Antimicrobianos não afetados: Piperacilina + Tazobactam, Ceftriaxona, Cefotaxima, Ceftazidima, Cefepime, Aztreonam, Imipenem, Meropenem e Ertapenem.

Fluoroquinolonas

Cepa com mutação na porção gyrA da enzima DNA girase: A presença de uma única mutação em alguma região do gene gyrA confere altos níveis de resistência ao Ácido Nalidíxico, mas não ao Ciprofloxacino, sendo necessário para o desenvolvimento de resistência plena às Fluoroquinolonas a aquisição de mutações adicionais no gene gyrA ou mutação no gene gyrB.
Antimicrobianos afetados: Norfloxacino, Ciprofloxacino, Levofloxacino, Ofloxacino e Ácido Nalidíxico.

Inibidores da síntese do Folato

Cepa com alteração de rota metabólica do PABA: A resistência ao Sulfametoxazol + Trimetoprim pode ser devido à:
  • Alteração da enzima que utiliza o PABA (diidropteroatosintetase);
  • Diminuição da permeabilidade bacteriana ou efluxo ativo da droga;
  • Uso de via metabólica alternativa para o metabólito essencial ou produção aumentada do metabólito essencial ou antagonismo da droga. 

5) Referências Bibliográficas:


  1. ALBINI, C.A. et al. Infecções urinárias: Uma abordagem multidisciplinar. Curitiba: Editora CRV, 2012, 764p.
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  7. WILES, T.J. & KULESUS, R.R. & MULVEY, M.A. Origins and virulence mechanisms of uropathogenic Escherichia coli. Experimental and Molecular Pathology.v.85, p. 11-19, 2008.
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